É para isto que serve a Literatura

Este é um livro rico em histórias e em História, com uma escrita moderna que surpreende

«Esta é uma obra de ficção. Embora escrita sob a forma de autobiografia, não o é». É assim que somos recebidos no livro Teoria das Catástrofes Elementares, o primeiro romance de Rita Canas Mendes. Importa esclarecer que esta teoria existe mesmo; não é um título rebuscado, fruto da mente original da autora.

«Ensina-nos a teoria matemática que todo o conhecimento súbito e avassalador, a que chamamos catástrofe, não é mais do que o produto de incontáveis pequenas transformações passadas, e que todas as formas e seres, que julgamos fixos e permanentes no tempo, estão sujeitos a imprevisíveis variações futuras», lê-se na contracapa e descobre-se ao longo das quase duzentas páginas deste romance.

Este é um livro rico em histórias e em História, com uma escrita moderna que surpreende, repleta de recursos literários, obra original que soa a autoficção (mas somos avisados, logo no início, de que não o é, apesar de desconfiarmos existir algo da autora em alguns fragmentos — toda a ficção transporta consigo, mesmo que de forma velada, pedaços de quem a escreve).

Não é leitura para todos os leitores. Exige ultrapassar os primeiros capítulos até entrarmos na história, ou melhor, nas histórias em mosaico, que se permitem existir e resultar enquanto narrativa, graças à riqueza e versatilidade da escrita de Rita Canas Mendes. Aborda temas como a saúde mental, a violência doméstica e a guerra colonial, em analepses (flashbacks) e episódios de vida da protagonista e pessoas próximas, numa narrativa não-linear, com pontes e efeito borboleta — algo que acontece num determinado momento e influencia sobremaneira os outros e quem seremos no futuro. É uma obra de amadurecimento, um Bildungsroman ligeiro.

São muitas linhas sobre «as catástrofes» de uma personagem principal, cujo nome só descobrimos bem perto do fim. É também no final que o livro muda o tom, o estilo de escrita e os temas, e surge-nos um pai com linguagem abusiva, um professor perseguidor, a questão do ensino da sexualidade nas escolas («A educação sexual não é doutrinar as crianças, é dar-lhes vocabulário para compreender o mundo.»), a via do patriarcado no casamento.

Teoria das Catástrofes Elementares traz-nos o quotidiano resultante de uma grande observação do real que possibilita a identificação do leitor: «Não tenho grandes dúvidas de que a origem de toda a violência, que culmina em guerras atrozes, é esta violência de fabrico caseiro, artesanal, um saber transmitido ao longo de gerações, de pais para filhos, do Estado para os cidadãos. Pólvora ao pequeno-almoço».

É um livro com «frases bonitas», algumas profundas e com cariz filosófico — não fosse Rita Canas Mendes formada em Filosofia. Esta é uma das minhas favoritas e bem poderia figurar num post-it colado no espelho da casa de banho e servir de mantra em cada dia: «Podemos morrer a qualquer instante, mas enquanto isso não acontece vamos sempre a tempo de renascer».

São páginas quase experimentais que exigem ao leitor um olhar atento, cuidado e reflexivo; é um livro que nos espicaça quando nos permite ler excertos como este:
«Desde muito cedo, vi insinuado por todos os lados que ser branco era melhor do que ser negro, ser magro era melhor do que ser gordo e ser rico era sempre preferível a ser pobre». Parecem verdades elementares e ingénuas, porém é desta matéria pouco subtil que a vida é feita, e a literatura nem sempre é fantasia, por vezes é extensão dos próprios absurdos da realidade.

É para isto que serve a Literatura.

 

Autora: Analita Alves dos Santos é autora e mentora literária

 

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