A modernização do rural tradicional algarvio

O apelo da natureza oferecido pelo rural tradicional algarvio, devidamente ajustado aos tempos modernos, é um campo imenso de possibilidades ao alcance da região e da economia da 2ª ruralidade

Volto a um tema que já aqui abordei, a modernização do rural tradicional algarvio. Usando o bom senso e o bom gosto e tirando partido do exemplo da Dieta Mediterrânica para modernizar, na boa direção, o rural tradicional algarvio, façamos algumas reflexões a propósito do seu sistema produtivo local (SPL).

Pensemos, por exemplo, na cadeia de valor da cabra algarvia e nas tarefas que essa opção acarreta, sempre numa perspetiva de valorização das economias locais e dos seus ecossistemas mais sensíveis. Se pensarmos nas múltiplas associações virtuosas entre a produção agrícola, a engenharia alimentar, a logística da distribuição, o marketing territorial, o design e a comunicação, as artes e a cultura, teremos um campo imenso de possibilidades para o SPL de bens e serviços estruturados em redor do cluster formado pela cabra algarvia, frutos silvestres, figo da índia, mel, medronho, cogumelos, ervas aromáticas e medicinais, cosmética artesanal, cinegética, citrinos, já para não falar do universo das sementes perdidas, sobretudo na área hortofrutícola, um mundo surpreendente que jaz expectante sob os nossos pés à espreita de uma oportunidade.

Além disso, estou a falar de manifestações de inteligência territorial que estão perfeitamente ao nosso alcance.

No plano mais operacional, a verticalização da cadeia de valor da cabra algarvia compreende as seguintes operações:

– Em primeiro lugar, reagrupar os produtores da raça autóctone da cabra algarvia tendo em vista apurar e valorizar a biodiversidade local da espécie e o seu nicho ecológico;

– Em segundo lugar, organizar a assistência técnica, associativa e pública, numa linha de abordagem mais agroecológica e ecossistémica;

– Em terceiro lugar, rejuvenescer o capital social envolvido, seja no plano familiar dos produtores, seja convidando novas entradas para o agrupamento;

– Em quarto lugar, melhorar o processo de produção, alargar as funções da cadeia de valor e acrescentar as suas internalidades e circularidades (economia circular) tendo em vista reduzir os seus custos de transação internos: raça, pastagem, biodiversidade, limpeza de matos, compostagem, etc.;

– Em quinto lugar, diversificar a linha de produtos finais da cabra algarvia e diversificar os mercados-alvo por via de uma comercialização e marketing mais inteligentes;

– Finalmente, capitalizar a fileira de produção e articular a cadeia de valor da cabra algarvia com a exploração agroflorestal das ZIF, acrescentando, por essa via, a massa, o músculo e o sistema nervoso deste sistema produtivo local e sub-regional.

Todavia, esta metodologia para a verticalização da fileira da cabra algarvia só será inteiramente bem-sucedida se, ao mesmo tempo, tivermos em mãos um projeto de economia criativa e visitação turística que esteja articulado com o SPL, de tal modo que deste cruzamento e desta malha reticular possamos derivar uma nova inteligência territorial e, a partir dela, desenhar um novo cabaz de produtos e serviços estruturados que possamos identificar com uma imagem mais contemporânea e cosmopolita da região.

A título ilustrativo, vejamos como esta malha mais apertada e esta capilaridade mais densa poderiam ser organizadas numa região como o Algarve e numa sub-região como o barrocal serra algarvio. Enumeremos as artes tradicionais e pensemos no que poderia ser realizado com algumas pequenas inovações introduzidas nestas atividades de tal modo que, a partir delas, se pudesse estruturar e construir um território-rede e uma economia de rede e visitação turística:

1. As artes do pastoreio da cabra algarvia;
2. As artes da rouparia/queijaria tradicional algarvia;
3. As artes da tirada da cortiça;
4. As artes do varejo e da apanha da azeitona;
5. As artes do varejo e da apanha da alfarroba e da amêndoa;
6. As artes da apicultura e da melaria e a transumância das abelhas;
7. As artes da pisa a pé das uvas;
8. As artes da destilação do medronho;
9. As artes da apanha do figo da índia;
10. As artes da apanha dos produtos micológicos;
11. As artes associadas à poda e ao enxerto;
12. As artes associadas à cosmética tradicional;
13. As artes associadas às ervas aromáticas;
14. As artes associadas às ervas medicinais;
15. As artes da cestaria e da olaria;
16. As artes associadas às flores comestíveis;
17. As artes associadas à pesca artesanal;
18. As artes associadas à caça e à cinegética;
19. As artes da confeitaria e doçaria tradicionais;
20. As artes associadas à culinária tradicional.

Imaginemos, agora, o mapeamento destas atividades no território-rede em construção e a diversidade de produtos e serviços estruturados que seria possível realizar a partir da combinação e cruzamento de todas estas atividades. A título de exemplo, apontamos algumas inovações em matéria de designe de produto obtidas pelo cruzamento entre as fileiras verticais de produção e as fileiras horizontais da visitação e do consumo, aqui designadas por nós sob a forma de um dia em:

Um dia na floresta da serra algarvia: a apanha dos frutos silvestres e a destilação do medronho conjugado com o turismo micológico e os percursos de natureza e a gastronomia serrana da dieta mediterrânica;

Um dia nas aldeias do barrocal algarvio: a colheita das ervas aromáticas e medicinais, a sua preparação e destilação, conjugado com a visita ao apiário e visitas guiadas ao património vivo e museológico das aldeias; à noite a gastronomia mediterrânica e os serões de música e teatro na aldeia;

Uma jornada científica e cultural no barrocal e serra algarvios: visitas guiadas para a observação dos endemismos florísticos e faunísticos do barrocal e serra algarvios, conjugado com percursos de natureza, as paisagens literárias, a gastronomia mediterrânica e os serões culturais de aldeia; importa lembrar que a inventariação e o plano de salvaguarda da dieta mediterrânica obrigam a criar uma linha de investigação nesta área em particular;

Um dia na caça: a preparação e a participação numa caçada, a culinária dos produtos da caça, sessões sobre a natureza e a vida selvagem e o turismo cinegético;

Um dia na Ria Formosa: a observação de peixes e aves na ria formosa, os percursos de natureza pela ria, a gastronomia da ria, sessões sobre a natureza e a vida selvagem da ria e atividades culturais e recreativas a pretexto da ria;

Um dia na rota da cortiça: a tirada da cortiça e a sua transformação industrial, as artes artísticas e decorativas associadas à cortiça, os produtos e a gastronomia do montado, a apanha de flores comestíveis, as sessões científicas, culturais e recreativas associadas à multifuncionalidade do montado;

Um dia no pastoreio: pastorear um rebanho de cabras de raça autóctone, recolher o leite e produzir o queijo artesanal, provar a gastronomia da dieta mediterrânica, assistir às sessões culturais e recreativas associadas ao sistema agro-silvo-pastoril;

Um dia no pomar tradicional de sequeiro do barrocal algarvio: a apanha do figo, da amêndoa e da alfarroba, a sua preparação e transformação, o artesanato da doçaria tradicional, workshops sobre a doçaria tradicional, a gastronomia da dieta mediterrânica, sessões sobre artesanato local;

Um dia na vinha e na adega: o conhecimento das boas práticas de produção na vinha, a pisa da uva, o processo de vinificação, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de vinho e o enoturismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas à vinha e ao vinho;

Um dia no olival e no lagar: o conhecimento das boas práticas de produção no olival, a apanha da azeitona, o processo de transformação no lagar, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de azeite, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas ao olival e ao azeite.

Estes programas curtos podem, ainda, estar associados com programas especiais para o turismo sénior e o turismo para grupos de mobilidade reduzida e ser articulados, por exemplo, com residências artísticas e a produção criativa e cultural (semanas criativas e culturais) e, ainda, com programas de educação física de manutenção e tratamento adaptados a grupos especiais e programas recreativos de eventos noturnos de fado, de teatro, de música de câmara, de folclore, de canto e poesia, de cinema e documentário, campeonatos de jogos de mesa, concursos vários, etc.

 

Nota Final

No caso do Algarve, com tanta visitação turística ao longo do ano, é fundamental verticalizar a economia algarvia entre o litoral e o barrocal serra e atrair uma parte dessa visitação para o interior algarvio através das atividades criativas que foram aqui sugeridas.

Não tenho dúvidas de que o apelo da natureza oferecido pelo rural tradicional algarvio, devidamente ajustado aos tempos modernos, é um campo imenso de possibilidades ao alcance da região e da economia da 2ª ruralidade.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

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