Livro «Odemira – Património, Religião, Sociedade e Território» é «um sinal que fica»

António Martins Quaresma e José António Falcão lançaram obra de grande fôlego

António Martins Quaresma e José António Falcão com a sua obra – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

1004 páginas, em três volumes, ostentando, na capa de cada um deles, uma gravura sobre desenho da autoria de Henrique Pousão, de 1880, retratando a barca de passagem do rio Mira. Os três livros são apresentados numa caixa, ilustrada com um mapa manuscrito, representando o rio Mira entre a foz em Vila Nova de Milfontes e Odemira, da autoria de Pedro Teixeira Albernaz, que data de 1634, ainda em tempo de Filipe III (IV de Espanha).

Se um homem não se mede aos palmos, um livro não se mede pelo número de páginas. Mas a dimensão de «Odemira – Património, Religião, Sociedade e Território», da autoria dos historiadores António Martins Quaresma e José António Falcão, e o cuidado colocado no seu design são sinais de que se trata de «uma obra literalmente de peso».

José António Falcão, um dos autores, recordou, em declarações ao Sul Informação, que a obra, lançada a 8 de Setembro, feriado municipal de Odemira, é o corolário de «uns quinze anos de trabalho, já nem consigo dizer com exatidão quantos».

José Alberto Guerreiro, presidente da Câmara de Odemira prestes a terminar três mandatos consecutivos à frente desta autarquia, sublinhou, no lançamento da obra, que «não é fácil alguém ter tanta paciência e tanta devoção para investigar durante década e meia».

O decano historiador José Mattoso, que escreve o prefácio, classificou a dupla de autores como «investigadores que se apaixonam pelo quotidiano e pela narrativa de carácter local».

 

A antiga barca de passagem do rio Mira, em Odemira. Desenho de Henrique Pousão, gravado por Caetano Alberto (Occidente, LXV, 1 de Setembro de 1880

 

Este livro, explicou José António Falcão, «nasceu da necessidade de preservar um património profundamente ameaçado, o religioso, mas também o imaterial. Ou seja, preservar não apenas as igrejas, as capelas, mas também um património religioso imaterial», grande parte dele anterior ao cristianismo, mas que perdurou no quotidiano.

No fundo, combater uma certa «amnésia» que se vai abatendo sobre esse património material e imaterial.

Mas a obra vai muito mais além de um inventário do património. Como o próprio título indica, debruça-se sobre aquela sociedade, naquele território. «Percebemos que, para estudar um território, é preciso estudar uma realidade mais vasta, o património, a sociedade».

Mais do que as igrejas, as capelas ou as tradições, os protagonistas são «pessoas, famílias, coletividades». Por isso, acrescentou António Martins Quaresma, o outro autor, que há décadas se dedica a investigar sobre o concelho de Odemira, esta é uma «história não de indivíduos, mas de uma comunidade».

O livro revela novas e estimulantes perspetivas para o entendimento do concelho a uma escala global e traça interseções, algumas das quais insuspeitas, entre o património material e imaterial, a vida religiosa, a organização das comunidades locais e o vertebrar da região, entre o Atlântico e o interior.

Não só pelos anos que levou a completar, nem pela sua dimensão, mas sobretudo pela vastidão do tema, António Martins Quaresma não hesita em considerar este como «um trabalho de muito fôlego, que não existia antes», que faz uma «microanálise deste território, mas ultrapassa-o», enquadrando o «facto local e regional, no contexto nacional e internacional».

Isabel Cristina Fernandes, do Gabinete de Estudos sobre a Ordem de Santiago, que apresentou o livro, classificou-o como uma «tarefa hercúlea».

O que ali está, ao longo das mais de mil páginas, que resultam de uma aturada «recolha de informação dispersa, de atenção ao pormenor, com uma escrita de grande rigor e qualidade, própria de quem faz por paixão», teve inúmeras fontes, que também são listadas.

José António Falcão, nas suas declarações ao Sul Informação, referiu três tipos de fontes: «as já publicadas, a bibliografia existente, muito mais vasta do que se poderia esperar, recorrendo até a jornais regionais e nacionais».

Esta bibliografia local, sublinhou, conta com um «grande contributo» de António Martins Quaresma, o outro autor do livro, «grande inovador e pesquisador de fundo da história local». Falcão não hesitou em classificá-lo como «grand seigneur da historiografia portuguesa».

Depois, os arquivos e bibliotecas – desde os das paróquias e juntas de freguesia, à Biblioteca Nacional/Torre do Tombo, Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora, Arquivo de Simancas, em Espanha, ou Biblioteca Nacional de França, em Paris, entre muitos outros.

Finalmente, as fontes orais. Por isso mesmo, depois de ter agradecido ao município, que tem «uma atividade editorial muito consistente», às designers, ao revisor, que teve de rever tudo «mais de vinte vezes», à pré-impressão e impressão, aos funcionários da autarquia que participaram no trabalho editorial, José António Falcão teve uma palavra especial para «os particulares que emprestaram fotografias ou conversaram longamente, primeiro com António Martins Quaresma, depois comigo», sendo que «muitos deles já não estão entre nós».

A obra em três volumes, que se debruça sobre as onze paróquias históricas deste que é hoje o maior concelho do país, inclui igualmente uma iconografia e cartografia muito completas, apresentando mesmo algumas imagens inéditas ou pouco conhecidas, bem como uma bibliografia sistemática.

 

A abrir, há o prefácio do professor José Mattoso, uma das figuras maiores da historiografia nacional, mas que vive quase em reclusão. Por isso, como salientou Isabel Cristina Fernandes, «o próprio facto de ter aceitado assinar o prefácio já diz tudo sobre a obra». Também Falcão agradeceu ao «professor Mattoso, que foi de uma enorme generosidade ao escrever estas páginas».

O autarca José Alberto Guerreiro recordou que «o Município de Odemira tem, porventura, a maior quantidade de publicações apoiadas, de autores locais e de fora». Esta obra, acrescentou, «coloca a cereja no topo do bolo», tendo sido «o maior investimento de sempre em matéria editorial do município, que se justifica pela qualidade do trabalho». No entanto, esclareceu, «os autores cederam gratuitamente o seu trabalho para esta edição».

O ainda presidente da Câmara de Odemira disse que esta é uma obra que «mostra o muito que fomos, o que somos, o nosso território e as suas vicissitudes, e nos prepara melhor para o futuro».

José António Falcão concordou: «se não olharmos para trás, não conseguimos compreender-nos a nós próprios, nem olhar para o futuro».

António Martins Quaresma, por seu lado, referiu que «já se disse de Odemira que sempre teve um carácter de fim do mundo, mas a pesquisa histórica não nos diz isso». É que «o rio permitiu a penetração no território desde tempos remotos e sempre colocou esta terra em contacto com outras terras».

Basta ver que uma das Cantigas de Santa Maria, compostas por Afonso X de Leão e Castela, no século XIII, é dedicada a Odemira. Essa cantiga, aliás, é reproduzida no livro. «Isto é fazer parte da primeira divisão da literatura galaico-portuguesa», exclamou o investigador.

Exemplo da centralidade de Odemira em tempos remotos é ainda a eventual passagem, por Odemira, de Ricardo Coração de Leão, no século XII, a caminho da terceira cruzada na Terra Santa. «Terá entrado no rio e feito aqui a sua aguada».

No final, uma pessoa da assistência perguntou se os autores se tinham deparado com alguma surpresa durante a sua longa investigação. Quaresma respondeu que encontrou uma «grande surpresa que é uma constatação: a presença do rio, esta presença líquida que está até no nome da terra, do rio na qualidade de coluna vertebral do território».

Fazendo alusão à tal «amnésia» já antes referida, José Mattoso, no seu prefácio, salienta que, «depois de séculos de escassez intelectual, como se o Alentejo fosse uma espécie de colónia árida e quase deserta, multiplicaram-se as investigações eruditas sobre instituições, centros urbanos, áreas rurais e tantos outros aspetos históricos desta região». Graças a todo esse trabalho, acrescenta, «o nosso conhecimento da história alentejana é, hoje, muito mais vasto e seguro do que era há meio século».

Sobre esta obra em concreto, José António Falcão haveria de dizer que dá «espessura histórica aos factos locais e regionais, integrando-os na história nacional e até internacional». «É um sinal que fica».

«Se há alguma coisa que é eterna, essa eternidade é garantida por um livro». E porque um livro é «algo que pode circular», exemplares desta obra vão ser enviados para a Biblioteca do Congresso, em Washington (Estados Unidos da América), para a Biblioteca Apostólica Vaticana, Biblioteca Nacional de Paris, Biblioteca Nacional de Madrid, entre outras. Ou seja, de Odemira para o mundo.

«Odemira – Património, Religião, Sociedade e Território» é uma edição conjunta da Câmara Municipal de Odemira e da associação Pedra Angular. Quaisquer pedidos para adquirir a obra devem ser dirigidas a estas duas instituições.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

 



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